- Muitos consideram que as suas crenças religiosas são independentes do sentido que dão à vida. Contudo, outros consideram que a religião responde significativamente ao problema do sentido da vida. Vamos estudar uma influente resposta cristã ao problema do sentido da vida, defendida por Liev Tolstoi (1828-1910), e as respectivas críticas.
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Antes, porém, vamos esclarecer o próprio problema do sentido da vida.
Há três condições necessárias para que uma atividade tenha sentido:
A atividade tem de ter uma finalidade (a que também se chama «propósito» ou «objetivo»).
Essa finalidade tem de ser alcançável.
Essa finalidade tem de ter valor.
A finalidade de algo é a razão pela qual essa coisa foi feita.
O problema do sentido da vida é análogo ao problema do sentido de cada atividade em particular. Trata-se de saber, aqui, se a nossa vida, no seu todo, tem alguma finalidade, ou mais de uma; se tal finalidade é alcançável; e se tem valor.
A resposta de Tolstoi ao problema do sentido da vida tem duas componentes principais: uma negativa e outra positiva, que buscam estabelecer a seguinte proposição:
Negativa: • Se Deus não existe, a vida não faz sentido.
Positiva: • Se Deus existe, a vida faz sentido.
Juntando as duas temos: • A vida faz sentido se, e só se, Deus existe.
Ou seja, Tolstoi defende que a existência de Deus é uma condição necessária e suficiente para que a vida tenha sentido.
→→→ O que está em causa é argumentar a favor de uma conexão entre a existência de Deus e o sentido da vida. É a defesa desta conexão, e respectivas críticas, que iremos agora estudar.
Comecemos pela componente negativa da resposta de Tolstoi:
A mortalidade e impermanência humanas anulam o sentido da nossa vida. A mortalidade porque todos estaremos mortos daqui a algum tempo. A impermanência anula tudo o que fazemos porque tudo acabará por desaparecer.
Assim, Tolstoi defende as seguintes proposições:
T1. Se formos mortais, a vida não tem sentido.
T2. Se nada do que fazemos é permanente, nada do que fazemos tem sentido.
A componente positiva da resposta de Tolstoi ao problema do sentido da vida tem dois elementos:
Afirma que Deus nos criou com uma alma imortal;
Irá recompensar-nos ou castigar-nos, em função do modo como vivermos a vida.
Assim, Tolstoi defende a proposição:
T3. Se temos uma alma imortal e se Deus nos criou com uma finalidade, a vida humana tem sentido.
A própria experiência humana da finitude provoca uma abertura à transcendência. Ao descobrir que somos mortais e que tudo o que fizermos acabará por desaparecer, somos levados a pensar que o sentido da nossa vida não pode ser imanente. Por outras palavras, o sentido da vida não pode estar na própria vida, mas apenas para lá dela.
A resposta de Tolstoi é objetivista. Deus, a imortalidade e o paraíso não são meras ilusões emocionalmente reconfortantes, independentemente de serem verdadeiras ou falsas, mas aspectos reais das coisas. Se a sua resposta fosse subjetivista, seria como defender que o sentido da vida é apenas viver uma vida de ilusória esperança ou mentira.
O que está em causa para Tolstoi é argumentar que a existência de Deus dá sentido à vida porque nesse caso temos almas imortais e uma finalidade.
Leitura e análise de texto:
«Muito bem, serás mais famoso do que Gogol, Pushkin, Shakespeare, Molière, mais famoso do que todos os escritores do mundo – e depois?»
E eu não encontrava resposta absolutamente nenhuma.
[...]
E isto estava a acontecer-me quando tudo indicava que se devia considerar que eu era um homem completamente feliz; isto aconteceu-me quando não tinha ainda cinquenta anos. Tinha uma mulher bondosa e dedicada que eu amava, bons filhos e bens que cresciam sem qualquer esforço da minha parte. Era mais do que nunca respeitado por amigos e conhecidos, elogiado por estranhos, e podia dizer sem qualquer ilusão que gozava de uma certa celebridade. Além disso, não estava sem saúde física nem mental; pelo contrário, gozava de um vigor físico e mental que raramente encontrava em pessoas da minha idade. Fisicamente, podia acompanhar os camponeses no trabalho de campo; mentalmente, podia trabalhar entre oito a dez horas de seguida sem sofrer quaisquer efeitos do esforço. E nesta situação cheguei a um ponto em que não podia viver; e apesar de temer a morte tinha de usar ardis contra mim mesmo para não me suicidar.
[…]
Eu não conseguia atribuir qualquer sentido racional a um único ato em toda a minha vida. O que me surpreendia era não ter compreendido isso desde sempre. Toda a gente soubera sempre disso. A doença e a morte, mais cedo ou mais tarde, acabariam por vir (na verdade, aproximavam-se já), afetando toda a gente e eu próprio, e nada restaria exceto podridão e vermes. Os meus feitos, sejam eles quais forem, serão esquecidos mais cedo ou mais tarde, e eu próprio não existirei mais. Porquê, então, fazer seja o que for? Como pode alguém não ver isto e viver? É isso que é espantoso! Só é possível viver enquanto a vida nos intoxica; quando ficamos sóbrios não podemos deixar de ver que tudo isto é uma ilusão, uma estúpida ilusão! E isto não é divertido nem espirituoso; é apenas cruel e estúpido.
[...]
A minha questão, a questão que me tinha conduzido à beira do suicídio quando eu tinha cinquenta anos, era a questão mais simples que existe na alma de todos os seres humanos, da criança simplória ao mais sábio dos anciãos, a questão sem a qual a vida é impossível; pois era o que eu sentia com respeito a isso. A questão é esta: O que será do que faço hoje e amanhã? O que será da minha vida inteira?
Expresso de forma diferente, a questão pode ser: Por que hei de viver? Por que hei de desejar ou fazer seja o que for? Ou, de outra forma ainda: Há algum sentido na minha vida que não seja destruído pela minha morte, que se aproxima inevitavelmente?
[...]
A resposta dada pelo conhecimento racional é apenas uma indicação de que só se pode obter uma resposta formulando a questão de maneira diferente, isto é, só quando a relação entre o finito e o infinito for introduzida na questão. Tomei também consciência de que por mais irracionais ou pouco atraentes que fossem as respostas dadas pela fé, têm a vantagem de introduzir em todas as respostas uma relação entre o finito e o infinito, sem a qual não pode haver resposta. Ponha eu como puser a questão de saber como viver, a resposta é: de acordo com a lei de Deus. Haverá algo de real que resulte da minha vida? Tormento eterno ou felicidade eterna. Que sentido há que não seja destruído pela morte? A união com o Deus infinito, o paraíso. (Liev Tolstoi, Confissão, 1882, trad. de Desidério Murcho, pp. 27, 29-30, 34-35, 60)
Atividades:
1. Formule o problema do sentido da vida.
2. Indique o valor de verdade de cada uma das seguintes afirmações e justifique a sua resposta:
a) Para uma vida ter sentido não basta ter uma finalidade.
b) Para uma vida ter sentido basta ter uma finalidade que possa ser atingida.
c) Uma vida com sentido pode ter várias finalidades.
3. «A vida faz sentido desde que as nossas finalidades sejam importantes para nós próprios.» Concorda? Por quê?
4. Imagine-se que a finalidade principal da vida de uma pessoa é acabar com a fome no mundo, mas que não a conseguiu atingir, apesar de ter conseguido salvar muitas pessoas de morrer à fome. Será que a sua vida não teve sentido? Por quê?
5. Explique os problemas da mortalidade e da impermanência.
6. Explique quais são os dois elementos positivos da resposta de Tolstoi ao problema do sentido da vida.
7. Que proposições defende Tolstoi, no que respeita ao sentido da vida?
8. Quais são as negações das proposições T1, T2 e T3?
9. O que quer o autor dizer com a pergunta «E depois?» quando considera a possibilidade de ser muito famoso e bem sucedido?
10. Tolstoi era feliz quando colocou o problema do sentido da vida? Porquê?
11. Por que razão pensa Tolstoi que, de um ponto de vista mais alargado, a sua felicidade e sucesso não têm qualquer valor?
12. A que se refere Tolstoi quando fala da relação entre o finito e o infinito?
13. Qual é o sentido da vida, segundo Tolstoi?
Fonte: A Arte de Pensar 10B. Aires Almeida e outros. Didactica Editora. 1ª Ed.